A Coleção

 

A Coleção, de Harold Pinter, ganha primeira montagem paulistana com direção de Esther Góes

 
O espetáculo teatral A Coleção, texto de Harold Pinter com tradução de Flávio Rangel, ganhou a primeira montagem paulistana com direção de Esther Góes.
 
A peça explora a relação entre dois casais, cujas histórias se cruzam de forma conflituosa, tendo como cenário o mundo da alta costura e como tempero um misto de humor e crueldade que não deixa impune o espectador.
 
O pano de fundo de A Coleção é a criação de coleções de moda, mas a narrativa é focada nas relações de imprevista intimidade estabelecida entre os casais, por meio de interpretações de grande densidade dramática e de refinado humor. Pinter propõe uma deliciosa e cruel cumplicidade com o espectador ao desvendar a complexa relação dos personagens em um suposto caso amoroso. A história se passa na década de 60, época marcada por questões inovadoras, um momento de forte transgressão relacionada à sexualidade e ao desejo de viver, intensamente, a liberdade.
 
O enredo
 
Dois casais entram num jogo de final imprevisível. O primeiro (James e Stella) é bem sucedido, trabalha com moda e tem sua loja elegante. Stella é criadora de coleções, um nome em ascensão na alta costura. No mesmo bairro, num apartamento classe A, o segundo casal: Harry - de nível quase aristocrático - vive com Bill, 10 anos mais jovem, que também se dedica ao mundo da alta costura. Bill e Stella se conhecem em outra cidade, quando mostram suas coleções numa feira, e, possivelmente, vivem ardente noite de amor. No retorno, por motivos inexplicáveis, Stella conta ao marido James o sucedido “affair”.
 
James, no início do espetáculo, movimenta a ação, procurando e indo ao encontro de Bill para, talvez, averiguar os danos? Conferir o rival? Possivelmente decidido a extravasar os sentimentos de maneira nada civilizada? A ação de James desencadeia outras. Enquanto ele intercala encontros com Bill e seu quotidiano com Stella, Harry procura Stella, e finalmente James, Bill e Harry interagem. A sucessão de encontros é ao mesmo tempo lógica e desnorteante. Possibilidades, das mais corriqueiras às mais bizarras, jogam com os nervos do espectador enquanto ele investiga as personalidades, reações e atitudes dos personagens.
 
 
Estão todos condenados a viver a atmosfera de um pesadelo. O discurso de Harry, o silêncio de Stella, a fragmentação de Bill, são armadilhas e alçapões. Stella e James, Harry e Bill, são personagens contemporâneos, reconhecíveis e ao mesmo tempo misteriosos. Eles espelham, resumem, e ao mesmo tempo tornam ainda menos compreensível a real situação humana e os mecanismos que a reproduzem. Com o necessário misto de humor e crueldade, compartilhados com o espectador.
 
A encenação
 
Harold Pinter não se distancia da história para escrevê-la. Ele interage com o texto, indo muito além das palavras. Segundo a diretora Esther Góes, “Pinter explora o absurdo para refletir a realidade. Não lhe interessa teorizar, mas colocar em cena a verdade do ser humano sem retoques. Ele não propõe soluções, mas investiga às claras”. Ela ainda complementa: “A Coleção é um texto de extrema contemporaneidade, ele expressa a complexidade do mundo atual. O próprio Pinter é personagem do nosso tempo, um autor necessário por retratar a realidade não de forma descritiva, mas como se fosse um corte feito em profundidade”.
 
A diretora afirma que a encenação de um texto de Harold Pinter requer atenção a alguns detalhes. “O primeiro deles é que, além dos personagens, o autor interage com o cenário, o figurino, a luz e a música, como outros quatro personagens emitindo mensagens. Ele nos dá preciosas pistas”. Esther explica que os dois cenários simultâneos (casas dos casais, ligadas por uma cabine telefônica no centro da encenação, descritas pelo autor como “penínsulas ligadas por um promontório”), na verdade falam do inevitável, como se os destinos humanos não pudessem se furtar ao que lhes vai acontecer.
 
Da mesma forma, ela diz que os figurinos (Beth Filipecki) oferecem signos eternos (como os sentimentos, o claro/escuro dos desejos), mas o pano de fundo, “coleções” de moda, expressa também ambiguidades, metamorfoses, fetiches e desvarios. A luz (Mauro Martorelli) oscila entre o quotidiano, o universo conhecido, que nos aproxima daquelas velhas tensões, e a distância que, subitamente, se revela como se fosse a primeira vez que vemos tal coisa. A luz reitera essa dupla possibilidade de leitura, de identificação e estranhamento. A trilha sonora (Aline Meyer), entre o clássico e o moderno, ajuda a demonstrar que Pinter consegue aliar o realismo e o absurdo. Dor, ironia, e alguma possível esperança, alternando-se aos silenciosos momentos de espera. Tudo isto ocorre em salas bem decoradas e com suposto equilíbrio que, dificilmente, se sustenta.
 
Harold Pinter
 
Considerado um dos mestres do absurdo, Harold Pinter se descreve como naturalista. O tratamento dado ao texto é de uma perfeita esgrima entre o “natural” e o percebido pelo observador crítico e arguto, captando e descrevendo fenômenos surpreendentes em comportamento habituais. Sua linguagem é rigorosa, rítmica, e conduz o foco da atenção direto aos detalhes e vestígios de tais fenômenos, num quadro sutil de pausas e diagramas quase imperceptíveis.
 
A obra de Pinter é considerada de expressiva contribuição social ao ponto dele ser laureado, entre outros, com o Prêmio Nobel da Literatura. Ele é tido como um dos mais inquietantes dramaturgos da atualidade, um “questionador das verdades aceitas, na vida e na arte”, segundo escreveu sobre ele Michael Billington. Pinter persegue a realidade que permanece oculta pela linguagem e percepção comuns. A diretora afirma que o “autor encoraja seu espectador a ir além, para encontrar a realidade que inclui o lado desconhecido da nossa natureza e nos surpreende com outra imagem, de nós mesmos e dos outros, inesperadamente”.
 
 
Espetáculo: A Coleção
Texto: Harold Pinter
Tradução: Flávio Rangel
Direção: Esther Góes
Elenco: Ariel Borghi, Amazyles de Almeida, Marcos Suchara e Marcelo Szpektor
Figurino: Beth Filipecki
Cenário: Cristina Novaes
Iluminação: Mauro Martorelli
Trilha sonora: Aline Meyer
Coreografia de lutas cênicas: Dani Hu
Confecção de gato: Helô Cardoso
Realização: Ensaio Geral Produções
Local: Teatro Grande Otelo

Entrevistas recentes - Vídeos

 
Vídeo do programa SaladaNet, de Maura Roth (TV Aberta), com Esther Góes e Ariel Borghi: https://www.saladanet.com/video_detalhe.php?id=676
 
 
Vídeo do Programa Bate Papo copm Cristina Pinho (Just TV), com Esther Góes e Ariel Borghi: https://www.youtube.com/watch?v=KcspNlX3yrM&feature=youtu.be
 
 
Leia crítica de Jair Alves para "A Coleção.
https://portalmacunaima.ning.com/forum/topics/sete-boas-razoes-para-condenar-pinter?xg_source=activity


Foto de Gal Oppido
 
 
Esther Góes responde
 
Respondendo ao Jair Alves
 
Imensamente grata pela análise lúcida que você fez do nosso espetáculo “A Coleção”, de Harold Pinter, e pela avaliação, transformada em pergunta sutil, de por que montar Pinter e encarar a dificuldade de não montar alguma coisa bem mais “fácil”.
 
Você pergunta o que nos leva, no momento presente, a preferir mostrar a teia de mentiras e estranhos comportamentos “naturais” dos quatro personagens de “A Coleção” – para Pinter, talvez, um desenho da lógica do real convívio humano. Não seria melhor fingir que isso nem existe?
 
Respondendo, prefiro citar duas afirmações de Pinter sobre o Teatro e o que ele persegue. Como sempre, o conteúdo do trabalho e o contexto de sua realização se confundem.
 
Ele disse:
“O Teatro é essencialmente investigador. Nem mesmo o velho Sófocles sabia o que ia acontecer na próxima cena. Ele precisava encontrar o caminho num território desconhecido. Ao mesmo tempo, o teatro sempre foi um ato crítico, um amplo olhar para a sociedade em que vivemos, tentando refletir e dramatizar essas descobertas. Não estamos falando da lua. São escavações.”
 
E também:
“Não posso dizer que todo trabalho que escrevi é político. Mas eu sinto a questão de como o poder é usado, e de como a violência é usada, como se aterroriza alguém, como se subjuga alguém, isto sempre esteve vivo no meu trabalho”.
 
Por estas questões, da investigação humana em desconhecido território, e por uma posição permanentemente crítica diante da nossa realidade social, é que criamos “A Coleção”, e que continuaremos a por em cena desafios e perguntas a qualquer plateia que tenha o desejo de responde-las e queira permanecer viva.
 
Você faz parte dela.
Um grande abraço
Esther Góes
 

Publicado em 31 de março de 2012

 

Pequenas mentiras alimentam peça de Pinter

Esther Góes dirige versão de "A Coleção"

COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O cenário de "A Coleção", como indica o texto do autor Harold Pinter (1930-2008), é dividido no meio. Nas pontas, desenham-se os ambientes de duas casas, separados por uma rua em que se destaca uma cabine telefônica.

Para montar o texto, Esther Góes segue à risca essas indicações. A atriz e diretora faz a cena se impregnar de elementos alusivos à época em que o texto foi escrito (1961).

De um lado, Ariel Borghi e Amazyles de Almeida interpretam um casal heterossexual; do outro, Marcos Suchara e Marcelo Szpektor, um par gay. "Um acontecimento faz com que os universos se misturem", resume Góes.

Mestre em revestir conflitos de natureza psicológica de notas oníricas, Pinter retrata uma geração que descobre as possibilidades das transgressões sexuais.

Como define Góes, Pinter faz vir à tona, em sua obra, a violência de pequenas mentiras, traições e atitudes perversas. "Somos selvagens muito bem envernizados", resume ela.


 

 

Galeria de Fotos: A Coleção